novembro 24, 2013

Fortuna

Suas mãos não tremiam, mas o cérebro parecia inchado. Não pelo calor amazônico. Quando chamaram seu nome, e o Bispo estendeu a mão, tentou relembrar o que havia combinado consigo nas últimas semanas.

Desafiar o Bispo não era trivial para ela, que estava acostumada a dormir em redes, ver jacarés e piranhas no rio e comer tacacá bem quente, mesmo sob as altas e úmidas temperaturas dos trópicos.

Achava normal dividir a casa com seis irmãos e irmãs, os pais e a índia que cuidava dos afazeres domésticos, a mesma que, vítima dos afetos imprevistos, achou por bem olhar pela menina mais frágil da casa, pequena e magra. Uma mãe de sete costuma dividir a tarefa com os filhos mais velhos. Percebendo o espaço, a índia, a quem chamava de Dinda, resolveu ocupá-lo.

Não eram ricos, tampouco pobres. Havia roupas boas para todos e refeições fartas. Não apenas peixe. Uma vez por semana, comiam carne. Nos aniversários, cada um recebia uma moeda para comprar aquilo que quisesse – um sorvete, umas flores, um passeio de bonde, coisas assim.

O pai era uma mistura de ternura e severidade. “Comprou” a mãe quando a recém-moça completou 13 anos. Simplesmente se apaixonou. Nem a diferença de idade, de quase 20 anos, nem a juventude da moça foram capazes de contê-lo. Decidiu que juntaria dinheiro suficiente para casar com a bela morena egípcia.

O futuro sogro e a menina não ficaram muito felizes com a ideia da união em idade tão tenra, mas o sírio era teimoso, queria casar de toda forma, e não houve quem tirasse de sua cabeça a obsessão por Sultana (perfeita como supunha o nome), principalmente depois que conseguiu acordar um montante em ouro com a sogra – não que tivesse o valor naquele momento, mas sabia que, no Brasil, na Amazônia, era possível, pois mesmo o primo Mauricio, com suas limitações, tinha conseguido reunir valor ainda maior, então, certamente, não seria um problema para ele acumular a pequena fortuna e ter a sua companheira ideal.

Para desgosto da família, depois do casamento, ele decidiu deixar o Oriente Médio de vez e levar sua Sultana consigo.

Então, no meio da Amazônia, ela nasceu, a quarta dos sete irmãos. Seu nome, Fortuna.

Quando chegou a idade, a mãe achou seguro que as filhas estudassem em uma escola católica de freiras, mesmo sendo judeus. Não via com bons olhos os avançados colégios mistos.

Fortuna conseguiu lidar bem com a situação, era estudiosa e dedicada, a queridinha das freiras, que não costumavam passar dos limites ao lhe falar das virtudes do Salvador, e, a bem da verdade, ela gostava de escutar as histórias. Às vezes, até assistia à aula de religião, com a permissão das irmãs, sem rezar.

E assim passaram-se os anos de estudos até que chegou o esperado momento da formatura. Um dia, as freiras reuniram todas as alunas do último ano no pátio para contar a grande honra que a escola receberia naquele ano. As meninas que se formariam em 1943 eram privilegiadas e abençoadas. Ninguém menos que o Bispo estaria presente na cerimônia de entrega dos diplomas. As irmãs, então, detalharam os procedimentos que cada menina deveria seguir em respeito ao Bispo, à escola e à Igreja. Não apenas naquele dia, mas em todos os que restavam até a data do encerramento das atividades da escola, as irmãs não cansaram de repetir o protocolo a ser seguido. O principal: beijar o anel do Bispo, em sinal de respeito e fé.

Fortuna seria uma das primeiras, já que seu nome começava com F. Havia apenas Abelarda, Bernarda, Corina, Carola e Eduarda antes dela.

No momento em que as freiras anunciaram a presença do Bispo na cerimônia, sentiu a cabeça inchar. Sua mãe sempre contava histórias sobre o orgulho judaico, sobre heróis que preferiram a morte a se ajoelhar diante de uma imagem romana. Respeito não é subserviência, dizia Sultana.

A cada dia de aula, sentia sua mente chacoalhar mais. Não tinha liberdade para conversar com os adultos, nem seus pais, nem a Dinda, e as colegas – mesmo suas irmãs – não a entenderiam.

Ela teria que tomar a decisão sozinha: beijar ou não beijar o anel do Bispo?

A cerimônia começou com todas as meninas em fila. Ela era a sexta, depois de Abelarda, Bernarda, Corina, Carola e Eduarda. Vestia, como todas, meias brancas de algodão até o joelho, saia azul marinho no comprimento adequado, camisa social e uma gravata. Fortuna suava – o que parecia bem normal para um dia de dezembro na Amazônia.

Houve alguns discursos, inclusive do Bispo. Ela não entendeu uma palavra, mas ele falou sobre Jesus e sobre as meninas estarem preparadas para ser boas filhas e esposas. Os nomes começaram a ser chamados. Chegou o momento. A vez de Fortuna.

Ouviu seu nome. Caminhou até o local onde estava o Bispo. Olhou em seus olhos. Ele entregou o diploma. Ela sorriu. Ele estendeu a mão.

Ela tentou lembrar do que tinha combinado consigo. A mão não tremia, mas era como se seu cérebro estivesse inchado de tanta tensão. Seguiu seu plano: estendeu a mão de volta e cumprimentou o Bispo. Manteve o olhar firme e esperou pela reação.

O Bispo deu um sorriso e parabenizou a jovem, agora formada.

novembro 23, 2013

O Dilema de Clarice

As formigas miúdas e pretinhas subiram no bolo enfileiradas. Clarice acompanhou e tentou contá-las, mas eram muitas. Quando chegou em 17, ficou confusa. Não sabia se já tinha contado a de trás, parou para entender onde estava e, quando percebeu, a fila tinha andado bastante. Não conseguia mais reconhecer a formiga 17. 
 
Será que tem problema comer formiga? Alguém tinha explicado que essas pequenininhas eram até saudáveis e nutritivas. E não eram sujas como as baratas! Será? Como saber? Já tinha caído em tanta conversa de menino. Às vezes, eles mentiam muito bem. Inventavam uma história tão realista que era difícil não acreditar. Então, nunca sabia. Tentava olhar nos olhos – ouvira que era ali que se escondia a verdade – mas havia garotos que disfarçavam até os olhos!

Algumas das formigas carregavam grãos do bolo. Sua mãe ficaria chateada! É como se cada uma levasse um fubazinho. Huummm! Que delícia! E de nada adiantava os obstáculos que sua mãe colocava: um prato com água, um suporte elevado. Estas dificuldades apenas instigavam as formigas, que pareciam gostar do desafio. Claro, elas sempre venciam.

Comer ou não comer um pedaço daquele bolo, que, com ou sem formigas, exalava um aroma aconchegante? Agora, elas pareciam apenas grãozinhos pretos em meio aos amarelos, como granulados de brigadeiro. A mãe colocava desses de vez em quando no bolo - e até que ficava bom.

Clarice sentiu um peteleco atrás da orelha. Quando virou, seus óculos estavam tortos, graças a um movimento hábil de seu irmão. Clarice estava tão concentrada na questão do bolo e das formigas que nem viu o menino chegando. Com um gesto rápido, ele conseguiu deslocar os óculos e, em seguida, pegá-los e sair correndo com o troféu nas mãos e uma risadinha no rosto.

Agora, ela estava ali, diante do bolo e, incrivelmente, não via mais formigas. O bolo também já não era tão definido. Sentia apenas o cheiro doce, agora ainda melhor do que antes. Claro que sabia que era o mesmo bolo e, que, dificilmente, as formigas tivessem saído de lá junto com seu irmão.

Mas uma vez ouviu que quem vê cara não vê coração. Agora não via nem um nem outro. Clarice pegou a faca, cortou uma fatia bem generosa, levou à boca e sentiu umas coceguinhas leves e gostosas nos lábios e na língua. Ficou feliz porque, além de tudo, comeu um bolo mais nutritivo do que os outros.