setembro 11, 2008

Capítulo 3

Aquela cidade representava igualmente solidão e liberdade. Acolhimento e distância. Clichê que fosse, sua mais completa tradução era mesmo a música de Caetano.

Nada sentiu quando cruzou a Ipiranga e a São João. Lembrou-se apenas da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, sem a praia a duas quadras dali.

O tempo a ensinaria a abandonar o ressentimento pela cidade cinza. Sentindo-se íntima, passaria a chamá-la de Sampa.

Admiraria sua organização caótica. Seria, então, impossível não pensar nos belos contrastes da cidade como uma Lapa amplificada.

"Em São Paulo as coisas acontecem", era o que Ana repetia e acreditava. Era por isso que estava ali.

A beleza de São Paulo não era óbvia como a do Rio de Janeiro, era uma beleza sutil. De repente, percebeu-se um homem do tipo mais ordinário, que não enxerga além de belas coxas e seios fartos, que não percebe que as mulheres mais bonitas escondem-se em detalhes.

Levaria bastante tempo para perceber tudo isso.

Naquele momento, Ana pensava que ter duas casas era como ter nenhuma. Era como sempre algo faltar. Era como nunca pertencer.

setembro 07, 2008

Capítulo 2

Ana compartilhava com Garfield seu ódio às segundas-feiras. Talvez sua melancolia fosse maior nesses dias. A consciência de ser acordada em horário pré-determinado por outros era mais intensa no primeiro (ou segundo?) dia da semana.

Sempre chegava atrasada no trabalho. Se dissesse que não a incomodava o zum zum zum dos colegas quando aparecia quase 40 minutos depois do horário estabelecido, mentiria. Ao mesmo tempo sua vontade era gritar: “acordai, irmãos! Acordai, mas acordai na hora em que bem entendei, puta que pariu!”.

Contraditoriamente, seu senso de responsabilidade era muito forte, assim como seu orgulho. Talvez por isso seu chefe poucas vezes ousara fazer insinuações sobre o hábito marginal de chegar atrasada pelas manhãs. Ana algumas vezes lutou contra ele – o hábito -, mas quase sempre perdeu. E, depois, desistiu.

Era essa sua demonstração torta de marginalidade. Sua forma de mostrar que não era igual. Tola. Tola. Ela sabia. Sua dualidade era o desejo inseparável de pertencer e esnobar, de querer igualar-se e diferenciar-se com a mesma intensidade. Pensou em colocar aí a origem de sua melancolia, mas sabia que estaria sendo, mais uma vez, tola.

Na hora do almoço, gostava invariavelmente de companhia, especialmente de uma menina que conhecera no trabalho. Ela pouco, quase nada, tinha em comum com Ana.

Júlia era doce, tímida e triste. Sentia-se sempre menos. Ana tinha um sentimento maternal por Júlia. Admirava sua sensibilidade, embora tivessem gostos tão diferentes. Júlia não gostava de ler, era fã das comédias românticas americanas e adorava comprar roupas. Mas sabia as pessoas muito antes delas mesmas.

- Vamos descer?, ligou para Júlia.
- Vamos. Vou terminar de escrever um e-mail. A gente se encontra lá embaixo em 5 minutos, disse Júlia, desligando o telefone.

Quando Ana chegou ao lobby do prédio, Júlia já estava lá. Ela sempre chegava antes, nunca deixava ninguém esperando por ela. No íntimo, tinha um medo danado de ser esquecida.

- O Pedro não me ligou de novo. Não entendo o que está acontecendo.

Os homens de Júlia sempre a abandonavam aos poucos. Como se realmente deixassem de lembrar e, aos poucos, ela desaparecesse para eles.

Ana sentia uma tristeza por Júlia. Qual homem conseguiria ver por trás de suas distorções defensivas e a enxergaria realmente?

- Você também parece triste, Ana. Não fica não. A gente acaba se adaptando a tudo.

Júlia talvez tivesse razão, mas Ana sempre tivera dificuldade de adequar-se e, em São Paulo, essa falta parecia ainda maior.

No início, muita coisa a incomodava tremendamente em São Paulo. Sabia que muito era implicância, pura saudade de casa, recalque mesmo. Entretanto, nem tudo, nem tudo...

Começava pelo sotaque de uma parte dos paulistanos. Ao contrário de muita gente, não a incomodava o “r” caipira, quase americano, dos nativos do interior de São Paulo. Era o modo meio anasalado de falar, pronunciado especialmente por algumas “patricinhas” locais, que lhe dava arrepios.

O ar provinciano – pois é, dizia isso – de alguns paulistanos a surpreendeu. Essa mania de exibir o que têm, de só “freqüentar” determinados lugares “bem freqüentados”, por gente igual que só “freqüenta” os mesmos locais, essa mania era irritante demais para ela.

O cabelo liso da maioria das meninas, sempre de maquiagem, sempre de salto alto, sempre de bolsa-combinando-com-sapato, tudo isso a fazia sentir-se um peixe fora d’água.

Apesar de todas as críticas, tentava adaptar-se. Embora tenha se recusado a alisar os cabelos, comprou os tais sapatos de salto e adotou a maquiagem no dia-a-dia. Mas sempre achava que os outros perceberiam que não era ela ali atrás.
City Lights (Charlie Chaplin, 1931)

Uma das melhores seqüências do cinema.

Gênios

Nelson Freire


Jascha Heifetz


P.S. Música de Gluck, dica do Paulo

setembro 04, 2008

Uma dor

Trago em mim uma dor.
Não a dor pungente dos poetas.
Mas a dor suave das meninas.

A dor das meninas que se sabem meninas.