outubro 09, 2011

Desnuvem


Às 20h31min cheguei do trabalho. Às oito horas e trinta e dois minutos e sete segundos, um gesto dele mudou a história daquele instante. Se, antes, o orgulho ainda armadurava meus órgãos frágeis, passado aquele gesto, o empafioma quase crônico foi curado. Numa fração de tempo anterior ao gesto, o pesado som do cinza ainda penetrava pelas paredes rígidas da casa. Mas, no momento seguinte, a vida passava a ser um petit gateau com recheio quente de chocolate e sorvete de pistache.

Às 20h31min cheguei do trabalho. Abri a porta, vi as mãos dele grandes e protetoras. O iminente contato era um pensamento distante, pois eu ainda carregava a tempestade, a mochila pesada dos compromissos, os sapatos de peixe apodrecido, as fagulhas da pressa, as partículas de pólvora. Às oito horas e trinta e dois minutos e sete segundos, relâmpagamente, ele me transformaria.

Às 20h31min cheguei do trabalho. Abri a porta. Ele ouvia Chopin. Com um sorriso, dizia, “escuta!, um noturno de Chopin jamais poderia ser às dez da manhã”. Mas eu ainda levava comigo a dureza das buzinas, dos freios dos coletivos, dos raios de sol, das árvores ressecadas. Às oito horas e trinta e dois minutos e sete segundos, um semitom suavizaria a melodia.

Às 20h31min cheguei do trabalho. Os olhos dele eram Chaplin, espelhos d’água que refletiam cubos de açúcar e café quentinho. Mas eu ainda mantinha unhas pintadas, tailleur bem cortado, meias grudadas, chapinha e pés de agulha. Às oito horas e trinta e dois minutos e sete segundos, um frame daria início a um novo filme.

Às 20h31min cheguei do trabalho. Ele era gramado verde, suor, pós-chuva, lírio, maresia, chiclete de tutti-frutti, bebê, feijoada, manjericão, livro novo. Mas eu ainda guardava em mim, por um último instante, pedras pesadas, carro velho, motor a diesel, gás carbônico, querosene.

Aí, ele se aproximou, com toda a almofadidade de suas mãos, o laguismo de seus olhos, a casebridade de sua música, seu cheiro de homem e seu sabor. E, com um único gesto dele, morreu tudo o que era desalmofada, deslagoa, anticasa, desomem, insosso.

Às oito horas e trinta e dois minutos e sete segundos, na noite de São Paulo, o beijo dele foi desnuvem.

*Texto-exercício para o curso de Escrita Criativa, da Casa do Saber, com a prof. Noemi Jaffe. Os neologismos foram criações coletivas, inclusive a desnuvem.

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