dezembro 13, 2014

Não vejo mais literatura no metrô. E certamente não há poesia no escritório de um prédio velho da Paulista. Alguns podem dizer que a arquitetura do edifício é isso ou aquilo – inspirada num fulano japonês. Mas, para mim, é um prédio velho. E que mal há nisso?

Meu caminho é igual todos os dias. Sempre vejo a mesma estrofe de Fernando Pessoa na parede do Metrô, os mesmos bancos verdes com ranhuras, a mesma catraca, que agora é uma porta de vidro transparente e futurista, a mesma calçada cinza e sem graça, a mesma ascensorista que, ao molde dos anos 80, ouve Cindy Lauper num radinho,  os mesmos colegas, o mesmo som do teclado, as mesmas risadas, os mesmos bigodes, carecas, cabelos alisados...

E, mesmo assim, acho bom.  

Até Vinícius, que é vinícius, rejeitou um passarinho.

Então, agora declaro: quero andar de metrô e subir de elevador e teclar no computador e distribuir sorrisos e cumprimentos educados.


E não venham meter o nariz na minha janela.

novembro 24, 2013

Fortuna

Suas mãos não tremiam, mas o cérebro parecia inchado. Não pelo calor amazônico. Quando chamaram seu nome, e o Bispo estendeu a mão, tentou relembrar o que havia combinado consigo nas últimas semanas.

Desafiar o Bispo não era trivial para ela, que estava acostumada a dormir em redes, ver jacarés e piranhas no rio e comer tacacá bem quente, mesmo sob as altas e úmidas temperaturas dos trópicos.

Achava normal dividir a casa com seis irmãos e irmãs, os pais e a índia que cuidava dos afazeres domésticos, a mesma que, vítima dos afetos imprevistos, achou por bem olhar pela menina mais frágil da casa, pequena e magra. Uma mãe de sete costuma dividir a tarefa com os filhos mais velhos. Percebendo o espaço, a índia, a quem chamava de Dinda, resolveu ocupá-lo.

Não eram ricos, tampouco pobres. Havia roupas boas para todos e refeições fartas. Não apenas peixe. Uma vez por semana, comiam carne. Nos aniversários, cada um recebia uma moeda para comprar aquilo que quisesse – um sorvete, umas flores, um passeio de bonde, coisas assim.

O pai era uma mistura de ternura e severidade. “Comprou” a mãe quando a recém-moça completou 13 anos. Simplesmente se apaixonou. Nem a diferença de idade, de quase 20 anos, nem a juventude da moça foram capazes de contê-lo. Decidiu que juntaria dinheiro suficiente para casar com a bela morena egípcia.

O futuro sogro e a menina não ficaram muito felizes com a ideia da união em idade tão tenra, mas o sírio era teimoso, queria casar de toda forma, e não houve quem tirasse de sua cabeça a obsessão por Sultana (perfeita como supunha o nome), principalmente depois que conseguiu acordar um montante em ouro com a sogra – não que tivesse o valor naquele momento, mas sabia que, no Brasil, na Amazônia, era possível, pois mesmo o primo Mauricio, com suas limitações, tinha conseguido reunir valor ainda maior, então, certamente, não seria um problema para ele acumular a pequena fortuna e ter a sua companheira ideal.

Para desgosto da família, depois do casamento, ele decidiu deixar o Oriente Médio de vez e levar sua Sultana consigo.

Então, no meio da Amazônia, ela nasceu, a quarta dos sete irmãos. Seu nome, Fortuna.

Quando chegou a idade, a mãe achou seguro que as filhas estudassem em uma escola católica de freiras, mesmo sendo judeus. Não via com bons olhos os avançados colégios mistos.

Fortuna conseguiu lidar bem com a situação, era estudiosa e dedicada, a queridinha das freiras, que não costumavam passar dos limites ao lhe falar das virtudes do Salvador, e, a bem da verdade, ela gostava de escutar as histórias. Às vezes, até assistia à aula de religião, com a permissão das irmãs, sem rezar.

E assim passaram-se os anos de estudos até que chegou o esperado momento da formatura. Um dia, as freiras reuniram todas as alunas do último ano no pátio para contar a grande honra que a escola receberia naquele ano. As meninas que se formariam em 1943 eram privilegiadas e abençoadas. Ninguém menos que o Bispo estaria presente na cerimônia de entrega dos diplomas. As irmãs, então, detalharam os procedimentos que cada menina deveria seguir em respeito ao Bispo, à escola e à Igreja. Não apenas naquele dia, mas em todos os que restavam até a data do encerramento das atividades da escola, as irmãs não cansaram de repetir o protocolo a ser seguido. O principal: beijar o anel do Bispo, em sinal de respeito e fé.

Fortuna seria uma das primeiras, já que seu nome começava com F. Havia apenas Abelarda, Bernarda, Corina, Carola e Eduarda antes dela.

No momento em que as freiras anunciaram a presença do Bispo na cerimônia, sentiu a cabeça inchar. Sua mãe sempre contava histórias sobre o orgulho judaico, sobre heróis que preferiram a morte a se ajoelhar diante de uma imagem romana. Respeito não é subserviência, dizia Sultana.

A cada dia de aula, sentia sua mente chacoalhar mais. Não tinha liberdade para conversar com os adultos, nem seus pais, nem a Dinda, e as colegas – mesmo suas irmãs – não a entenderiam.

Ela teria que tomar a decisão sozinha: beijar ou não beijar o anel do Bispo?

A cerimônia começou com todas as meninas em fila. Ela era a sexta, depois de Abelarda, Bernarda, Corina, Carola e Eduarda. Vestia, como todas, meias brancas de algodão até o joelho, saia azul marinho no comprimento adequado, camisa social e uma gravata. Fortuna suava – o que parecia bem normal para um dia de dezembro na Amazônia.

Houve alguns discursos, inclusive do Bispo. Ela não entendeu uma palavra, mas ele falou sobre Jesus e sobre as meninas estarem preparadas para ser boas filhas e esposas. Os nomes começaram a ser chamados. Chegou o momento. A vez de Fortuna.

Ouviu seu nome. Caminhou até o local onde estava o Bispo. Olhou em seus olhos. Ele entregou o diploma. Ela sorriu. Ele estendeu a mão.

Ela tentou lembrar do que tinha combinado consigo. A mão não tremia, mas era como se seu cérebro estivesse inchado de tanta tensão. Seguiu seu plano: estendeu a mão de volta e cumprimentou o Bispo. Manteve o olhar firme e esperou pela reação.

O Bispo deu um sorriso e parabenizou a jovem, agora formada.

novembro 23, 2013

O Dilema de Clarice

As formigas miúdas e pretinhas subiram no bolo enfileiradas. Clarice acompanhou e tentou contá-las, mas eram muitas. Quando chegou em 17, ficou confusa. Não sabia se já tinha contado a de trás, parou para entender onde estava e, quando percebeu, a fila tinha andado bastante. Não conseguia mais reconhecer a formiga 17. 
 
Será que tem problema comer formiga? Alguém tinha explicado que essas pequenininhas eram até saudáveis e nutritivas. E não eram sujas como as baratas! Será? Como saber? Já tinha caído em tanta conversa de menino. Às vezes, eles mentiam muito bem. Inventavam uma história tão realista que era difícil não acreditar. Então, nunca sabia. Tentava olhar nos olhos – ouvira que era ali que se escondia a verdade – mas havia garotos que disfarçavam até os olhos!

Algumas das formigas carregavam grãos do bolo. Sua mãe ficaria chateada! É como se cada uma levasse um fubazinho. Huummm! Que delícia! E de nada adiantava os obstáculos que sua mãe colocava: um prato com água, um suporte elevado. Estas dificuldades apenas instigavam as formigas, que pareciam gostar do desafio. Claro, elas sempre venciam.

Comer ou não comer um pedaço daquele bolo, que, com ou sem formigas, exalava um aroma aconchegante? Agora, elas pareciam apenas grãozinhos pretos em meio aos amarelos, como granulados de brigadeiro. A mãe colocava desses de vez em quando no bolo - e até que ficava bom.

Clarice sentiu um peteleco atrás da orelha. Quando virou, seus óculos estavam tortos, graças a um movimento hábil de seu irmão. Clarice estava tão concentrada na questão do bolo e das formigas que nem viu o menino chegando. Com um gesto rápido, ele conseguiu deslocar os óculos e, em seguida, pegá-los e sair correndo com o troféu nas mãos e uma risadinha no rosto.

Agora, ela estava ali, diante do bolo e, incrivelmente, não via mais formigas. O bolo também já não era tão definido. Sentia apenas o cheiro doce, agora ainda melhor do que antes. Claro que sabia que era o mesmo bolo e, que, dificilmente, as formigas tivessem saído de lá junto com seu irmão.

Mas uma vez ouviu que quem vê cara não vê coração. Agora não via nem um nem outro. Clarice pegou a faca, cortou uma fatia bem generosa, levou à boca e sentiu umas coceguinhas leves e gostosas nos lábios e na língua. Ficou feliz porque, além de tudo, comeu um bolo mais nutritivo do que os outros.

outubro 23, 2012


Distância e Verdade

A distância tem um aspecto cruel. Às vezes faz parecer que algumas realidades não existem. Na velha lógica do "ver para crer", pode nos parecer que a Síria sem jornalistas não está sendo destruída pelo próprio ditador ou que a Islândia foi exterminada depois da crise financeira. Quantas vezes você não leu um artigo sobre um lugar pouco conhecido e pensou: será que é verdade?

É claro que o conceito de distância é relativo. Israel pode ser mais próximo de São Paulo do que uma aldeia indígena da Amazônia. Afinal, por aqui, parece (é só uma impressão, não verifiquei) que há mais notícias sobre o Oriente Médio do que sobre o Norte do Brasil. A repetição de notícias sobre um determinado lugar  também pode trazer essa sensação de proximidade e verdade.

Por isso, às vezes Hong Kong pode ser mais real do que o Amapá para algumas pessoas no mercado financeiro. Ou a Disney mais perto do que o Mato Grosso para alguns adolescentes de classe média.

Estas palavras não são uma crítica, já que é impossível conhecer tudo e acompanhar o que acontece no mundo inteiro. Apenas uma constatação. As redes sociais estão dando vida a uma triste notícia de um lugar distante: a morte de indígenas afastados de suas terras e tradições. Por que eu não sabia disso e agora é tão duramente real?

novembro 13, 2011

O Levante

Verinha de Alcântara era a mais exaltada. Do alto de seu Louboutin (da mais recente coleção, com a sola vermelha) não deixava uma pergunta sem resposta. Pelos seus ideais era capaz das discussões mais acirradas.

Orgulhava-se muito de seu temperamento sempre pronto para qualquer debate de alto nível. Não se conteve ao ouvir Laurinha de Albuquerque Menezes, sabidamente uma biscate sem berço, aceita no “Women in Politics” por generosidade do grupo, dizer que tinha medo de manifestações nas ruas. Repreendeu-a fortemente e não deu espaço para indagações.

Ora, ela, Verinha de Alcântara, já tinha feito vários cursos na Casa do Saber, já havia conversado com grandes nomes, como padre Marcelo Rossi, Fábio Melo, Gabriel Chalita. “Não podemos ter medo das massas!”, disse com o dedo em riste, unhas pintadas de Dragon, último lançamento da Chanel.

Laurinha abaixou a cabeça envergonhada, mas ainda tentou se defender. “Tenho medo. Imagina se estas pessoas se tornam agressivas...”, disse abaixando o tom a cada palavra. Maria Helena Amendoeira interrompeu: “Querida, somos mães e mulheres modernas e inteligentes. Nos encontramos aqui para discutir o futuro deste país! E o futuro do Brasil passa pela mobilização do povo”, explicou, bastante exaltada. “O que precisamos nos interrogar é: como? para quê?, entende?”, questionou.

Neste momento Verinha interveio. “Queria fazer um adendo. O problema é o ‘como’. ‘Para quê’ é simples. Precisamos combater a corrupção! Meu marido, o senador Alcântara - dispensa apresentações, claro -, sempre diz: o que mata este país é a corrupção! O Brasil tem tantas riquezas, tem tanta natureza! E a água! No futuro, a água valerá mais do que ouro. Isso sem falar nas pessoas, que são o coraç...”, virou-se ao perceber que tinha alguém ao seu lado.

“O que você quer, Maria? Não quero café agora, querida. Pode ir.” “Meu nome é Sônia”, disse a empregada, mas já era tarde. Verinha continuou seu discurso, defendendo a mobilização das massas, com o fim principal de eliminar a corrupção de uma vez por todas neste país. Propôs que cada uma das mulheres procurasse angariar o maior número de pessoas para a causa. Esclareceu que era fundamental a participação de todas.

Após o longo discurso, as presentes aplaudiram. E, então, Laurinha, para mudar os rumos da conversa - já estava ficando pesada com toda esta coisa de política -, perguntou ao repórter enviado por um jornal, que acompanhava as discussões em silêncio: “e a ocupação da USP por alunos? Quais são as novidades?”.

 O jornalista ia responder, mas não houve tempo. “Um absurdo!”, Verinha gritou. “É tudo orquestrado. Isso é coisa destes sem-terra, sem-teto, sem-vergonha, mafiosos fazendo futrica com falsos estudantes.” Maria Helena, por fim, decretou: “a polícia deveria ter sido mais incisiva! Deveria ter usado bombas de efeito moral, para deixá-los bem quietinhos”.

Após algumas colocações pertinentes das mais relevantes participantes do grupo, todas trocaram beijinhos e despediram-se. Era hora de ir, afinal, quase todas tinham ainda uma longa agenda de compromissos durante o dia.

*Baseado em notícia publicada na Folha de São Paulo: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1011201111.htm

outubro 31, 2011

“The Clock, 24 Hours”


Não tinha relógio por perto, quando ele me puxou desprevenida. Não sabia as horas. Vestidos de calça jeans e camiseta, entramos no espaçoso hall iluminado, de pé direito altíssimo, em que personagens de um filme do Woody Allen riam, tagarelavam e bebiam prosecco, com seus trajes de gala. Sem graça no início, logo percebi que éramos quase invisíveis naquele mundo. Era como se tivéssemos ultrapassado um portal inexistente para outra dimensão. Ele me olhou com seu melhor olhar e, mais uma vez, me puxou, desta vez em direção às escadas daquele renovado casarão em Veneza. Antes de subir, uma placa dizia “The Clock, 24 Hours” e outras coisas que não me lembro mais. Subimos, dando risadas e trocando olhares cúmplices. Ao chegar, a mágica se revelou: um cinema belo e improvisado. Algumas pessoas assistiam, outras se levantavam e iam embora, mulheres de longo ou curtíssimo, homens de terno e, alguns, de chapéu. Sentamos. Numa tela, cenas aparentemente desconexas, mas lindamente editadas, mostravam relógios. O relógio de James Bond marcava meia-noite e sete minutos. Dois minutos depois, o relógio de Benjamin Button mostrava meia-noite e nove minutos. No de Orson Welles eram meia-noite e treze. O de Woody Allen exibia meia-noite e quinze. “Que horas são?”, perguntei. “Meia-noite e quinze”, ele me disse, surpreso. Ficamos boquiabertos assistindo àquela inacreditável obra, resultado de muita paciência e de uma certa obsessão. Nunca tinha reparado que os filmes eram tão fartos em relógios e horários. Muito menos tinha imaginado que o próprio cinema poderia se transformar em um relógio. Queríamos esperar o fim e achamos muito mal-educados aqueles que se levantavam no meio do filme. Ali ficamos até uma da manhã - horário exibido na tela num Hitchcock -, quando tomamos coragem de voltar ao mundo real (é permitido chamar Veneza de mundo real?). Descemos as escadas e retomamos a placa. “The Clock, 24 Hours”. Em seus infinitos ciclos, o filme não tinha fim. E essa foi minha primeira experiência na Bienal.

outubro 24, 2011

Feliz começo de Patrícia Quitanda

Patrícia Quitanda. Nascida de classe média alta. Neta de avó e avô, filha de mãe e pai, irmã de irmão. 

O sr. Quitanda Junior, homem de muitas responsabilidades, não pôde estar presente no parto da filha, por motivo de grande importância. Era o dia da reunião com o homem mais poderoso  da multinacional de que era gerente pré-senior. Foi um momento decisivo em sua carreira de executivo fundamental para o andamento da empresa. Sem ele, a firma teria faturado  732.573.853,08 cruzados menos no ano de 1983, segundo estimativa do próprio sr. Quitanda Junior.

A sra. Quitanda Junior esteve presente no parto da filha. Meses depois, de volta ao cargo de jornalista especializada na seção Mulher de importante jornal concorrente direto do líder de circulação na cidade do Rio de Janeiro, deixou a menina sob os cuidados da sra. Quitanda. Seu mais relevante feito, realizado no plantão de domingo pela manhã, foi a cobertura da tragédia da enchente de 1985, até que sua colega responsável por Cidades pudesse comparecer ao local. Se não fosse a sua presença no horário exato em que um bombeiro retirou uma velha senhora de cima de um carro ilhado, a cobertura da enchente de 1985 teria sido mais pobre, de acordo com a própria sra. Quitanda Junior.

O sr. e a sra. Quitanda Junior, chefes de tradicional e unida família no Rio de Janeiro, criaram Patrícia e Ricardo nos mais elevados padrões de conforto e acesso. As duas crianças estudaram em um dos mais caros colégio da cidade. Pena que Patrícia não aproveitou como Ricardo, coitada. Ela tinha muitas dificuldades, coitada.

Ricardo, importante executivo de multinacional, comprou apartamento próprio aos 32 anos.

Patrícia, sem função definida no mundo, foi morar em Belo Horizonte.