Suas
mãos não tremiam, mas o cérebro parecia inchado. Não pelo calor amazônico. Quando chamaram seu nome, e o Bispo estendeu a mão, tentou relembrar o que havia combinado consigo nas últimas semanas.
Desafiar o Bispo não era trivial para ela, que estava acostumada a dormir
em redes, ver jacarés e piranhas no rio e comer tacacá bem quente, mesmo sob as
altas e úmidas temperaturas dos trópicos.
Achava normal dividir a casa com seis irmãos e irmãs, os pais e a índia que
cuidava dos afazeres domésticos, a mesma que, vítima dos afetos imprevistos,
achou por bem olhar pela menina mais frágil da casa, pequena e magra. Uma mãe
de sete costuma dividir a tarefa com os filhos mais velhos. Percebendo o
espaço, a índia, a quem chamava de Dinda, resolveu ocupá-lo.
Não
eram ricos, tampouco pobres. Havia roupas boas para todos e refeições fartas.
Não apenas peixe. Uma vez por semana, comiam carne. Nos aniversários, cada um
recebia uma moeda para comprar aquilo que quisesse – um sorvete, umas flores,
um passeio de bonde, coisas assim.
O
pai era uma mistura de ternura e severidade. “Comprou” a mãe quando a recém-moça
completou 13 anos. Simplesmente se apaixonou. Nem a diferença de idade, de
quase 20 anos, nem a juventude da moça foram capazes de contê-lo. Decidiu que
juntaria dinheiro suficiente para casar com a bela morena egípcia.
O
futuro sogro e a menina não ficaram muito felizes com a ideia da união em idade
tão tenra, mas o sírio era teimoso, queria casar de toda forma, e não houve
quem tirasse de sua cabeça a obsessão por Sultana (perfeita como supunha o
nome), principalmente depois que conseguiu acordar um montante em ouro com a
sogra – não que tivesse o valor naquele momento, mas sabia que, no Brasil, na
Amazônia, era possível, pois mesmo o primo Mauricio, com suas limitações, tinha
conseguido reunir valor ainda maior, então, certamente, não seria um problema
para ele acumular a pequena fortuna e ter a sua companheira ideal.
Para
desgosto da família, depois do casamento, ele decidiu deixar o Oriente Médio de
vez e levar sua Sultana consigo.
Então, no meio da Amazônia, ela nasceu, a quarta dos sete irmãos. Seu nome, Fortuna.
Quando
chegou a idade, a mãe achou seguro que as filhas estudassem em uma escola
católica de freiras, mesmo sendo judeus. Não via com bons olhos os avançados colégios
mistos.
Fortuna
conseguiu lidar bem com a situação, era estudiosa e dedicada, a queridinha das
freiras, que não costumavam passar dos limites ao lhe falar das virtudes do
Salvador, e, a bem da verdade, ela gostava de escutar as histórias. Às vezes,
até assistia à aula de religião, com a permissão das irmãs, sem rezar.
E
assim passaram-se os anos de estudos até que chegou o esperado momento da
formatura. Um dia, as freiras reuniram todas as alunas do último ano no pátio
para contar a grande honra que a escola receberia naquele ano. As meninas que
se formariam em 1943 eram privilegiadas e abençoadas. Ninguém menos que o
Bispo estaria presente na cerimônia de entrega dos diplomas. As irmãs, então,
detalharam os procedimentos que cada menina deveria seguir em respeito ao
Bispo, à escola e à Igreja. Não apenas naquele dia, mas em todos os que
restavam até a data do encerramento das atividades da escola, as irmãs não
cansaram de repetir o protocolo a ser seguido. O principal: beijar o anel do
Bispo, em sinal de respeito e fé.
Fortuna
seria uma das primeiras, já que seu nome começava com F. Havia apenas Abelarda,
Bernarda, Corina, Carola e Eduarda antes dela.
No
momento em que as freiras anunciaram a presença do Bispo na cerimônia, sentiu a
cabeça inchar. Sua mãe sempre contava histórias sobre o orgulho judaico, sobre
heróis que preferiram a morte a se ajoelhar diante de uma imagem romana. Respeito
não é subserviência, dizia Sultana.
A
cada dia de aula, sentia sua mente chacoalhar mais. Não tinha liberdade para
conversar com os adultos, nem seus pais, nem a Dinda, e as colegas – mesmo suas
irmãs – não a entenderiam.
Ela
teria que tomar a decisão sozinha: beijar ou não beijar o anel do Bispo?
A
cerimônia começou com todas as meninas em fila. Ela era a sexta, depois de
Abelarda, Bernarda, Corina, Carola e Eduarda. Vestia, como todas, meias brancas
de algodão até o joelho, saia azul marinho no comprimento adequado, camisa
social e uma gravata. Fortuna suava – o que parecia bem normal para um dia de
dezembro na Amazônia.
Houve
alguns discursos, inclusive do Bispo. Ela não entendeu uma palavra, mas ele
falou sobre Jesus e sobre as meninas estarem preparadas para ser boas filhas e
esposas. Os nomes começaram a ser chamados. Chegou o momento. A vez de Fortuna.
Ouviu
seu nome. Caminhou até o local onde estava o Bispo. Olhou em seus olhos. Ele
entregou o diploma. Ela sorriu. Ele estendeu a mão.
Ela
tentou lembrar do que tinha combinado consigo. A mão não tremia, mas era
como se seu cérebro estivesse inchado de tanta tensão. Seguiu seu plano:
estendeu a mão de volta e cumprimentou o Bispo. Manteve o olhar firme e esperou
pela reação.
O
Bispo deu um sorriso e parabenizou a jovem, agora formada.